domingo, 22 de março de 2009

Canto XVII


















meu amigo, quais serão as hipóteses de voltarmos um com o outro a sonhar?
de que maneira inusual iremos contornar os dias pela sintaxe?
de que horas bravias sobreviveremos na violência dos cabelos atirados contra o mundo?
quais serão as cruzes a assinalar no jogo perdido da pele?
como resistirás a estes lábios entreabertos uma vez mais?
meu amigo, que terás para me oferecer em troca do vazio que restou?
pergunto-me com que vinho me encherão o copo no trilho do sangue
e como conseguirás assistir calado à minha entrega;
de que resistência falas quando a evasão te petrifica?
quantas florestas terão de ser abatidas para que os poemas nos dissolvam?
e bastará devorar árvores no esquecimento?
de que lado nascerá a luz nessa primeira manhã?
penso até quando te poderei chamar amigo.
_
Não é fácil ficar a sentir a memória a diluir-se na língua,
a laminar cores, dividi-las como um silêncio pelas pregas da túnica
onde se esconde um estranho batimento,
nessas cores que laboram como se agitassem
todo um terreno num grão só das costas.

É difícil voltar a erguer os olhos para outras mãos,
repetir, mais uma vez, o nome da morte em voz alta,
levar a maçã leprosa no fundo dos músculos e avançar
para que tudo de novo recue
nas sandálias de prata de um rapaz impronunciável,
para que se volte de novo a nudez contra o corpo
e a túnica se rasgue para encobrir o dito pelo não dito.

Ainda assim, podes colocar as mãos sobre mim,
por um instante que estanque o receio de subir
ao enclave do poema à beira da precipitação.

Só não tragas a promessa.

Foto: Hugo Joel / Textos de Ana Salomé (retirados do blog da autora http://cicio.blogspot.com/)

Sem comentários:

Enviar um comentário