sexta-feira, 27 de março de 2009

Canto XIX



















Hai un sangue, un respiro.

Sei fatta di carne

di capelli di sguardi

anche tu. Terra e piante,

cielo di marzo, luce,

vibrano e ti somigliano

il tuo riso e il tuo passo

come acque che sussultano

la tua ruga fra gli occhi

come nubi raccolte

il tuo tenero corpo

una zolla nel sole.

.

Hai un sangue, un respiro.

Vivi su questa terra.

Ne conosci i sapori

le stagioni i risvegli,

hai giocato nel sole,

hai parlato con noi.

Acqua chiara, virgulto

primaverile, terra,

germogliante silenzio,

tu hai giocato bambina

sotto un cielo diverso,

ne hai negli occhi il silenzio,

una nube, che sgorga

come polla dal fondo.

Ora ridi e sussulti

sopra questo silenzio.

.

Dolce frutto che vivi

sotto il cielo chiaro,

che respiri e vivi

questa nostra stagione,

nel tuo chiuso silenzio

è la tua forza. Come

erba viva nell’aria

rabbrividisci e ridi,

ma tu, tu sei terra.

Sei radice feroce.

Sei la terra che aspetta.

_

Tens um sangue, um sopro.

Feita de carne

de cabelos de olhares

também tu. Terra e plantas,

céu de Março, luz

vibram e assemelham-te –

o teu riso e o teu passo

como águas em sobressalto –

a tua ruga entre os olhos

como nuvens encolhidas –

o teu corpo brando

um torrão ao sol.

.

Tens um sangue, um sopro.

Habitas esta terra.

Conheces-lhe os sabores

as estações os despertares,

brincaste ao sol,

falaste connosco.

Água clara, rebento

primaveril, terra,

silêncio germinante,

tu brincaste menina

debaixo de um céu diferente,

tens nos olhos o silêncio

uma nuvem que jorra

como fonte do fundo.

Ora ris ora estremeces

neste silêncio.

.

Doce fruto que vives

debaixo do céu claro,

que respiras e vives

esta nossa estação,

a tua força reside

no teu silêncio fechado.

Como erva viva no ar

arrepias-te e ris,

mas tu, tu és terra.

És raiz feroz.

És a terra que espera.


Foto Hugo Joel / Texto Cesare Pavese (trad. C. Nunes de Almeida)

domingo, 22 de março de 2009

Canto XVIII


















Meu amigo, foi um prazer nascer ao teu lado

passar-te muitas gripes e contradições.

Gostava que um dia me dissesses

que as tuas melhores doenças vieram de mim.

As febres de sábado à noite fortíssimas

como as de domingo de manhã.

Curámo-las na própria doença. Lembras-te?

Foi por isso que se plantaram laranjeiras

nos lençóis foi por isso que se beberam

chás no deserto.

Agora corre entre nós esta saúde de ferro.

Não nos prevenimos.

Já não nos salvam as palavras repetidas

na dose certa.

Mas foi um prazer nascer, meu amigo.

Compor a cama e pôr o sol do teu lado.


Foto Hugo Joel / Texto C. Nunes de Almeida

Canto XVII


















meu amigo, quais serão as hipóteses de voltarmos um com o outro a sonhar?
de que maneira inusual iremos contornar os dias pela sintaxe?
de que horas bravias sobreviveremos na violência dos cabelos atirados contra o mundo?
quais serão as cruzes a assinalar no jogo perdido da pele?
como resistirás a estes lábios entreabertos uma vez mais?
meu amigo, que terás para me oferecer em troca do vazio que restou?
pergunto-me com que vinho me encherão o copo no trilho do sangue
e como conseguirás assistir calado à minha entrega;
de que resistência falas quando a evasão te petrifica?
quantas florestas terão de ser abatidas para que os poemas nos dissolvam?
e bastará devorar árvores no esquecimento?
de que lado nascerá a luz nessa primeira manhã?
penso até quando te poderei chamar amigo.
_
Não é fácil ficar a sentir a memória a diluir-se na língua,
a laminar cores, dividi-las como um silêncio pelas pregas da túnica
onde se esconde um estranho batimento,
nessas cores que laboram como se agitassem
todo um terreno num grão só das costas.

É difícil voltar a erguer os olhos para outras mãos,
repetir, mais uma vez, o nome da morte em voz alta,
levar a maçã leprosa no fundo dos músculos e avançar
para que tudo de novo recue
nas sandálias de prata de um rapaz impronunciável,
para que se volte de novo a nudez contra o corpo
e a túnica se rasgue para encobrir o dito pelo não dito.

Ainda assim, podes colocar as mãos sobre mim,
por um instante que estanque o receio de subir
ao enclave do poema à beira da precipitação.

Só não tragas a promessa.

Foto: Hugo Joel / Textos de Ana Salomé (retirados do blog da autora http://cicio.blogspot.com/)

terça-feira, 10 de março de 2009

Canto XVI



















Um leopardo

azul me conduz

pelo dorso da noite.

_

O que quer que fosse – o liso

algodão dos lábios, a almofada

volúvel do sorriso.

Lâmpadas

ardendo sob

as devolutas pálpebras.

_

Morangos

eram

tuas pupilas

brancas.

_

Eu te baptizo: hidrângea

é teu nome – cesto

de água, idioma

e intriga do perfume.

_

Para nenúfar

sobrava-te água.














Foto Hugo Joel / Textos Albano Martins, in A Margem do Azul

domingo, 1 de março de 2009

Canto XV













En Occident, les femmes virtuoses ont fourmillé. Les femmes ont beaucoup aimé la musique. Les femmes qui ont beaucoup composé furent à tout le moins rares. Elles échappent à la mue. Pour retrouver la voix de leur enfance, il ne leur est demandé aucun effort, il leur suffit de parler, il leur suffit d’ouvrir la bouche. Elles dominent dans leur voix – d’un bout à l’autre de leur voix. Elles sont prééminence dans le temps e toute-puissance tonale, et hégémonie dans la durée, et empire le plus absolu dans l’empreinte sonore exercée sur les plus petits – sur les naissants. Les hommes sont voués, à partir de treize ou quatorze ans, à la perte de la compagnie du propre chant de leurs émotions, de l’émotion native, de l’affetto. La mue redouble la séparation avec le corps premier. Comme la présence de leur sexe entre leurs jambes, la voix grave, fautive, aggravée qui sort de leurs lèvres, la pomme d’Adam, à mi-partie du cou, scellent la perte de l’Éden. La mue est l’empreinte physique matérialisant la nostalgie, vouée à la nostalgie, mais la rend inoubliable, sans cesse se rappelle dans son expression même. Toute voix basse est une voix tombée. Pour peu que les hommes desserrent les dents, aussitôt – comme un nimbe sonore autour de leur corps – le son de leur voix dit : Ils ne recouvreront jamais la voix. Le temps est en eux. Ils ne rebrousseront jamais chemin. Ils composent avec la perte de la voix et ils composent avec le temps. Ce sont des compositeurs. La métamorphose du grave à l’aigu n’est pas possible. Du moins: n’est pas corporellement possible. Elle n’est qu’instrumentalement possible. Elle a nom la musique.

-

No Ocidente, as mulheres virtuosas abundaram. As mulheres amaram muito a música. Porém, as mulheres que compuseram muito foram bem mais raras. Escaparam à mudança. Para reencontrarem a voz da infância não se lhes pede nenhum esforço, basta-lhes falar, basta-lhes abrir a boca. Elas dominam na sua voz – de uma ponta à outra da voz. São preeminência no tempo e omnipotência tonal, e hegemonia na duração, e o império mais absoluto no sinal sonoro enviado aos mais pequenos – aos que nascem. Os homens estão destinados, a partir dos treze ou catorze anos, a perder a companhia do próprio canto das emoções, da emoção congénita, do affetto. A mudança duplica a separação com o corpo primeiro. Como a presença do sexo entre as suas pernas, a voz grave, faltosa, que sai dos seus lábios, a maçã de Adão, a meio do pescoço, selam a perda do Éden. A mudança de voz é a marca física materializando a nostalgia, votada à nostalgia, mas também o que a torna inesquecível, evocada continuamente na sua própria expressão. Toda a voz baixa é uma voz caída. Por mais que os homens soltem os dentes, logo – como um nimbo sonoro em torno dos seus corpos – o som da voz lhes diz: Nunca reencontrarão a voz. O tempo entrou neles. Nunca retomarão o caminho. Compõem com a perda da voz e compõem com o tempo. São compositores. A metamorfose do grave ao agudo não é possível. Pelo menos, corporalmente possível. Ela não é senão instrumentalmente possível. Tem por nome, música.















Foto Hugo Joel / Texto Pascal Quignard, in «La leçon de musique» (tradução de C. Nunes de Almeida)

Canto XIV



















Amor:

ferrugem

preciosa.

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Amor:

metal

de quatro patas.


Foto Hugo Joel / Duas espécies de haikus de C. Nunes de Almeida