quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Canto VII

Cíclicos Galopes -

Homenagem Infinita a António Ramos Rosa













Cavalo, cavalo da terra, saltas sobre

toda a pobreza chã ou obstáculo.

O vigor da palavra é evidência acesa

é saber-te do chão até à crina.

-

Quem te arranca a força de raiz

em que vale te cavam ou te calam,

de perfil ou de fronte és cavalo sempre,

cavalo de sempre.

-

O teu nome é uma parede que nos fala

sobre o teu silêncio. E é um nome

que não se excede e horizontal se lê,

a prumo.

*

O calor dos campos e da cor em ti, cavalo,

e em mim o muro quente e a força do teu nome.

Não espero mas aceito a tua marcha

como quem navega no campo dessas cores.

-

Tua abrasada língua, teus olhos sem antolhos,

correm a liberdade dos campos sem a névoa,

relinchas do prazer de ser cavalo

(e não o sabes)

-

e aqui me tens numa linguagem árida

e tensa. Para que me arrebates ainda mais que nunca

sempre com a paz do teu campo de cores

e a grande paz da força, da tua boca descoberta,

-

sempre a alertar-me em palavras que são brasas

ou cinza ainda cálida do papel, destas formas

do meu amor da liberdade e do vigor

da vontade inteira em mim, cavalo.

*

Escrever-te é preparar-me para um novo dia,

uma luta de abraços e de flores no mar.

Escrever-te é enamorar-me do primeiro nome, a terra,

a casa, o chão; ligá-los músculo a músculo

-

até ao sabor quente do teu bafo animal.

A ferida, a raiva ferida, arrebatada

pelo teu corpo disparado, no silêncio

de um campo de ervas altas; o silêncio

dos nomes do campo concentrado

-

num muro branco.

O canto e o encanto das coisas nomeadas,

pedra alta, fria chuva, olhos acesos,

ervas e flores,

-

a geometria do teu andar desperta

e da dureza da terra faz o lugar voltar

ao seu lugar primeiro, ao teu nome de terra.

*

Creio em teu silêncio, na tua pele de luz,

no galope violeta, relâmpago terrestre,

animal de chuva, de vento e ar nocturno,

de ventas formidáveis aspirando o ar da noite.

-

O tempo amadureceu a luz da tua pele.

Minhas palavras tornam-se pedras do teu calor.

Mesmo entre nuvens, cheiras ao estrume do teu chão.

És a manhã do tempo, a madrugada madura.

-

De obstáculo em obstáculo, procuro o teu alento,

e a cor do ar do tempo, o teu aroma ardente,

a tua pulsação que rasga as rugas da terra.

-

Creio no teu vigor, na paciência do vagar,

na violência nascente que destrói muro a muro

e em cada pisada deixa um sinal de amor.

*

Não creio noutra palavra que nasça doutro olhar.

Não creio noutro silêncio que não seja o da água

e deste odor de ferro numa ondulante marcha

até à fonte do ar junto às muralhas frescas.

-

Não creio noutra palavra que não seja a palavra

do teu outono fulvo, amadurecido.

A secura é cruel, mas tu sustentas o canto

de um espanto ainda maior e o depões no silêncio.

-

Os dois lados do rosto, dilacerados, loucos,

despertam os vales e as montanhas agrestes.

Cavalgas com a pausa e a fúria do alimento

-

que faz girar os astros, os girassóis, os ventos.

Mil caminhos se cruzam e tu feres a luz

com a negrura sábia do teu olhar maduro.

*

Por um pouco de sombra após a luz do muro,

por um pouco de luz quando a sombra se adensa,

duas faces se formam, alguém caminha cego,

alguém quer ver a terra na limpidez do olhar.

-

Alguém a viu sair, essa mulher descalça

que marcha ao longo do muro impaciente e cega?

Apenas um murmúrio sobre as ondas visíveis,

apenas o perfil do cavalo sem a força.

-

É preciso dormir sobre escadas marinhas,

é preciso voltar à luz do muro, à sombra,

é preciso que a onda nasça de outra onda.

-

E cavalo e mulher na nudez mais perfeita

são as figuras vivas do sentir mais completo,

a perfeição do ser na frescura da forma.

*













*

Aqui seria a mancha mais clara

para um cavalo rosado ou cinza suave.

Aqui seria linear e ténue,

a vocação feliz de uma pequena nódoa.

-

As patas do cavalo vencem a inércia

de um princípio sem fim.

A fúria que eu invento é uma vontade

de dar à terra o seu cavalo fortíssimo.

-

E eu com ele soçobro ou me levanto.

Aqui seria… e é destino e força

o peso do animal que amo sobre mim.

*

As formas do teu ser são várias

mas negam a inércia, arrancam-te

do chão. Tens o poder e a altura precisas

para a vasta geografia dos campos e das casas.

-

És vertical no peso, na verdade do nome

do princípio ao fim, firme de seres terra

e o cheiro que tens é de um livre universo:

a terra pode esperar, confia em teu galope.

-

Por que te quero único, por não ser e

para ser, quantas vezes te falho

sem a paciência

da tua impaciência nobre de cavalo.

Mas o teu galope liberta o meu alento

e o meu desejo corre sobre a planície branca,

a teu lado chispando a rubra fúria,

com a garganta ébria

de uma implacável frescura.

*

A sombra de uma onda arrasta ainda outra sombra.

À onda de uma sombra sucede-se outra onda.

Ao meu cavalo perdido hei-de abrir o caminho

de outro cavalo mais forte e a tudo simultâneo.

-

O verde azul sombrio de uma colina ou nuvem.

(A tempestade arrebatou-te as vestes). Nus

somos agora a verde água de um seio

e o pão branco da casa sobre as dunas.

-

Despidos ao sol somos animais fulvos, vermelhos,

dos elementos nutrindo-se à sombra do cavalo,

à claridade do ócio e nas traves dos barcos.

-

O dia. Os seios. A água. A sombra. A luz. A febre.

Rodopia uma roda do pulso até à árvore

num céu todo aberto à sede mais feliz.

*

O meu trabalho é este sobre a página branca

com a lâmpada branca desvendar as cores

do dia e do cavalo, o crescimento sóbrio,

dilatação de vasos, circulação de rios.

-

Ordenar lá do fundo o vigor que me impele

e me converte na força da página vivida

por um sangue de amar e de rasgar as folhas,

unir na casa única a multiplicidade.

-

Meu amor – agora sim – posso dizer amor

através de insectos e serpentes e fetos

sobre a baba e o ranho do nascimento puro.

-

Atravessei os pântanos e afundei-me no lodo.

Caminho tropeçando e aos nervos do cavalo

arranco este galope, este vagar de estar.
























Fotos Hugo Joel / Textos António Ramos Rosa, in
«Ciclo do Cavalo»

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