Cíclicos Galopes -
Homenagem Infinita a António Ramos Rosa
Cavalo, cavalo da terra, saltas sobre
toda a pobreza chã ou obstáculo.
O vigor da palavra é evidência acesa
é saber-te do chão até à crina.
-
Quem te arranca a força de raiz
em que vale te cavam ou te calam,
de perfil ou de fronte és cavalo sempre,
cavalo de sempre.
-
O teu nome é uma parede que nos fala
sobre o teu silêncio. E é um nome
que não se excede e horizontal se lê,
a prumo.
*
O calor dos campos e da cor em ti, cavalo,
e em mim o muro quente e a força do teu nome.
Não espero mas aceito a tua marcha
como quem navega no campo dessas cores.
-
Tua abrasada língua, teus olhos sem antolhos,
correm a liberdade dos campos sem a névoa,
relinchas do prazer de ser cavalo
(e não o sabes)
-
e aqui me tens numa linguagem árida
e tensa. Para que me arrebates ainda mais que nunca
sempre com a paz do teu campo de cores
e a grande paz da força, da tua boca descoberta,
-
sempre a alertar-me em palavras que são brasas
ou cinza ainda cálida do papel, destas formas
do meu amor da liberdade e do vigor
da vontade inteira em mim, cavalo.
*
Escrever-te é preparar-me para um novo dia,
uma luta de abraços e de flores no mar.
Escrever-te é enamorar-me do primeiro nome, a terra,
a casa, o chão; ligá-los músculo a músculo
-
até ao sabor quente do teu bafo animal.
A ferida, a raiva ferida, arrebatada
pelo teu corpo disparado, no silêncio
de um campo de ervas altas; o silêncio
dos nomes do campo concentrado
-
num muro branco.
O canto e o encanto das coisas nomeadas,
pedra alta, fria chuva, olhos acesos,
ervas e flores,
-
a geometria do teu andar desperta
e da dureza da terra faz o lugar voltar
ao seu lugar primeiro, ao teu nome de terra.
*
Creio em teu silêncio, na tua pele de luz,
no galope violeta, relâmpago terrestre,
animal de chuva, de vento e ar nocturno,
de ventas formidáveis aspirando o ar da noite.
-
O tempo amadureceu a luz da tua pele.
Minhas palavras tornam-se pedras do teu calor.
Mesmo entre nuvens, cheiras ao estrume do teu chão.
És a manhã do tempo, a madrugada madura.
-
De obstáculo em obstáculo, procuro o teu alento,
e a cor do ar do tempo, o teu aroma ardente,
a tua pulsação que rasga as rugas da terra.
-
Creio no teu vigor, na paciência do vagar,
na violência nascente que destrói muro a muro
e em cada pisada deixa um sinal de amor.
*
Não creio noutra palavra que nasça doutro olhar.
Não creio noutro silêncio que não seja o da água
e deste odor de ferro numa ondulante marcha
até à fonte do ar junto às muralhas frescas.
-
Não creio noutra palavra que não seja a palavra
do teu outono fulvo, amadurecido.
A secura é cruel, mas tu sustentas o canto
de um espanto ainda maior e o depões no silêncio.
-
Os dois lados do rosto, dilacerados, loucos,
despertam os vales e as montanhas agrestes.
Cavalgas com a pausa e a fúria do alimento
-
que faz girar os astros, os girassóis, os ventos.
Mil caminhos se cruzam e tu feres a luz
com a negrura sábia do teu olhar maduro.
*
Por um pouco de sombra após a luz do muro,
por um pouco de luz quando a sombra se adensa,
duas faces se formam, alguém caminha cego,
alguém quer ver a terra na limpidez do olhar.
-
Alguém a viu sair, essa mulher descalça
que marcha ao longo do muro impaciente e cega?
Apenas um murmúrio sobre as ondas visíveis,
apenas o perfil do cavalo sem a força.
-
É preciso dormir sobre escadas marinhas,
é preciso voltar à luz do muro, à sombra,
é preciso que a onda nasça de outra onda.
-
E cavalo e mulher na nudez mais perfeita
são as figuras vivas do sentir mais completo,
a perfeição do ser na frescura da forma.
*
Aqui seria a mancha mais clara
para um cavalo rosado ou cinza suave.
Aqui seria linear e ténue,
a vocação feliz de uma pequena nódoa.
-
As patas do cavalo vencem a inércia
de um princípio sem fim.
A fúria que eu invento é uma vontade
de dar à terra o seu cavalo fortíssimo.
-
E eu com ele soçobro ou me levanto.
Aqui seria… e é destino e força
o peso do animal que amo sobre mim.
*
As formas do teu ser são várias
mas negam a inércia, arrancam-te
do chão. Tens o poder e a altura precisas
para a vasta geografia dos campos e das casas.
-
És vertical no peso, na verdade do nome
do princípio ao fim, firme de seres terra
e o cheiro que tens é de um livre universo:
a terra pode esperar, confia em teu galope.
-
Por que te quero único, por não ser e
para ser, quantas vezes te falho
sem a paciência
da tua impaciência nobre de cavalo.
Mas o teu galope liberta o meu alento
e o meu desejo corre sobre a planície branca,
a teu lado chispando a rubra fúria,
com a garganta ébria
de uma implacável frescura.
*
A sombra de uma onda arrasta ainda outra sombra.
À onda de uma sombra sucede-se outra onda.
Ao meu cavalo perdido hei-de abrir o caminho
de outro cavalo mais forte e a tudo simultâneo.
-
O verde azul sombrio de uma colina ou nuvem.
(A tempestade arrebatou-te as vestes). Nus
somos agora a verde água de um seio
e o pão branco da casa sobre as dunas.
-
Despidos ao sol somos animais fulvos, vermelhos,
dos elementos nutrindo-se à sombra do cavalo,
à claridade do ócio e nas traves dos barcos.
-
O dia. Os seios. A água. A sombra. A luz. A febre.
Rodopia uma roda do pulso até à árvore
num céu todo aberto à sede mais feliz.
*
O meu trabalho é este sobre a página branca
com a lâmpada branca desvendar as cores
do dia e do cavalo, o crescimento sóbrio,
dilatação de vasos, circulação de rios.
-
Ordenar lá do fundo o vigor que me impele
e me converte na força da página vivida
por um sangue de amar e de rasgar as folhas,
unir na casa única a multiplicidade.
-
Meu amor – agora sim – posso dizer amor
através de insectos e serpentes e fetos
sobre a baba e o ranho do nascimento puro.
-
Atravessei os pântanos e afundei-me no lodo.
Caminho tropeçando e aos nervos do cavalo
arranco este galope, este vagar de estar.

Fotos Hugo Joel / Textos António Ramos Rosa, in «Ciclo do Cavalo»
Bem sabemos que este post é grande, mas o poeta em causa é grandioso...
ResponderEliminarObrigado.