sexta-feira, 26 de junho de 2009

Canto XXIX













Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira instância do momento
de eu surgir e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto
beijava os teus olhos por dentro.
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas as noites
em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.

Foto: Hugo Joel / Texto Ana Hatherly

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Canto XXVIII



















Beneath my hands

Beneath my hands
your small breasts
are the upturned bellies
of breathing fallen sparrows.

Wherever you move
I hear the sounds of closing wings
of falling wings.

I am speechless
because you have fallen beside me
because your eyelashes
are the spines of tiny fragile animals.

I dread the time
when your mouth
begins to call me hunter.

When you call me close
to tell me
your body is not beautiful
I want to summon
the eyes and hidden mouths
of stone and light and water
to testify against you.

I want them
to surrender before you
the trembling rhyme of your face
from their deep caskets.

When you call me close
to tell me
your body is not beautiful
I want my body and my hands
to be pools
for your looking and laughing.

Foto Hugo Joel / Texto Leonard Cohen

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Canto XXVII



















El Mar, El Mar y Tú…

El mar, el mar y tú, plural espejo,
el mar de torso perezoso y lento
nadando por el mar, del mar sediento:
el mar que muere y nace en un reflejo.

El mar y tú, su mar, el mar espejo:
roca que escala el mar con paso lento,
pilar de sal que abate el mar sediento,
sed y vaivén y apenas un reflejo.

De la suma de instantes en que creces,
del círculo de imágenes del año,
retengo un mes de espumas y de peces,

y bajo cielos líquidos de estaño
tu cuerpo que en la luz abre bahías
al oscuro oleaje de los días.

Foto Hugo Joel / Texto Octavio Paz

Canto XXVI
















(a carta da paixão)

.

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.















Fotos Hugo Joel / Texto de Herberto Helder, in «PHOTOMATON & VOX»