terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Canto XXXV














VENTO TOLO

Vento tolo
tu és como aqueles amigos
que arranjam colocação algures
e depois já nem conversam
e se vão
inchados de certezas
e jornais.
Foto Hugo Joel / Texto Daniel Jonas, in «Os Fantasmas Inquilinos»

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Canto XXXV















Porque no Impossível é que está a realidade. Lóri suportava a luta porque Ulisses, na luta com ela, não era seu adversário: lutava por ela.
- Lóri, a dor não é motivo de preocupação. Faz parte da vida animal.
Ela apertou as mandíbulas, olhou para a lua gelada, olhou o zénite da esfera celeste.
Ele esmagava uma folha que caíra da árvore sobre a mesa do bar. E como para lhe dar de presente alguma coisa, ele disse:
- Sabe o que é sarcofila?
- Nunca ouvi esta palavra, respondeu.
- Sarcofila é a parte carnosa das plantas. Segure esta e sinta.
Estendeu a folha, Lóri tacteou-a com dedos sensíveis e esmagou-lhe a sarcofila. Sorriu. Era lindo dizer e pegar em: sarcofila.

Foto Hugo Joel / Texto Clarice Lispector, in «Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres»

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Canto XXXIV













Desta vez falo com os óculos postos

como as pessoas que falam a verdade.

Acredita. As saias os cabelos já não têm

um ar condicionado agora estou às escuras

aprendi a ir pela sombra quando vou com o teu nome.

.

Ai flor ai flor do sol a pino, quando vim para Julho

para a frente do mar vim com o teu nome vestido todo

abotoado às costas. Vim no teu cachecol de quilómetros.

E degolei a ventoinha. Mandei arrancar o limoeiro que havia

na ponta da língua. Mandei arrancar uma a uma

as unhas de gelo.

.

Acredita. Gosto mais de murchar à beira do teu copo.

Gosto de abrir o decote e mostrar o escaldão


Fotos Hugo Joel / Texto C. Nunes de Almeida


Canto XXXIII













A Casa do Mundo
.
Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.
.
Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.
.
Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.
.
Luzindo cheguei à porta
interrompo os objectos de família, atiro-lhes a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente me lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.
.
Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.
.
É a casa do mundo:
desaparece em seguida

Foto Hugo Joel / Texto Luísa Neto Jorge

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Canto XXXII















Esta manhã que nasceu tão roxa
fica bem com as azáleas do quintal da vizinha.
Fica bem com o meu vestido que é roxo
e fica bem com os teus sapatos –
que não são roxos são beges
mas ficam bem com o gato do quintal da vizinha.
.
É pena que não tenhas trazido as tuas melhores mãos.
Esta manhã vinha pedir-te que tirasses os atacadores
porque destoam.
.
E que ficasses sem atacadores sem mágoas sem sono
completamente bege.
E que amachucasses a pele roxa
do meu vestido.

.

Foto Hugo Joel / Texto C. Nunes de Almeida

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Canto XXXI - La RENTRÉE s'il vous plaît...



















Cântico da Puberdade


Havia tanto tempo que a criança se picara no fuso

mas girava ainda nas caves do seu corpo primeiro

abotoada às rochas

do outro lado da tarde.

.

Agora os sinos são maiores do que a capela.

As mãos já não são lugar onde o mar se amplie

onde o mar venha ladrar a quem passa.

Findam verões de pianos de cauda de gatos abandonados

à erosão daqueles dedinhos minerais.

As claves de sol entraram pela cozinha

misturaram-se com a carne das aves

bronzearam os músculos do pomar.


Fotos Hugo Joel / Texto C. Nunes de Almeida


quinta-feira, 2 de julho de 2009

Canto XXX



















Sei que dez anos nos separam de pedras
e raízes nos ouvidos

e ver-te, ó menina do quarto vermelho,
era ver a tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta no Infinito

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu eras uma estrela que caiu
e incendiou a terra

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos.

Foto Hugo Joel / Texto António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas"